I
“- Por
favor, apague a luz- disse a esposa jovialmente.
O marido a
observou por três segundos antes de acionar a escuridão.”
Realmente não
era uma das tardes mais agradáveis em Jumandia, a cidade conheceu um dos dias
mais frios dos últimos dez anos, e para piorar a situação, chovia fortemente e
ininterruptamente.
Os moradores se
irritavam facilmente com o clima. Para alguns, o principal motivo era a água
que entrava no sapato, sandália ou qualquer tipo de nome dado para um calçado,
encharcando as meias. Ninguém conseguia se prevenir da chuva na parte inferior
da calça jeans. Os guarda-chuvas entraram na moda instantaneamente, sem a menor
necessidade de um glamoroso desfile.
Entre uma
multidão de pessoas que corria por diversas direções na rua mais movimentada da
cidade, destacava-se um guarda-chuva preto carregado por Gustavo Lemarck.
Os ponteiros da
torre do relógio, ao final da rua, registravam quinze horas quando Gustavo, com
sua camisa de lã preta e sua calça jeans molhada, atravessava a livraria “Sopa
de Letras”. Em uma das mãos ele segurava uma caixa apoiada ao corpo, com a
outra o tradicional guarda-chuva. Por dez segundos ele parou e observou a
vitrine da livraria, depois continuou a sua caminhada até a primeira esquina, onde
esbarrou em uma garota com um guarda-chuva rosa.
- Você está
louco- Esbravejou ela enquanto pegava as pastas que havia deixado cair no chão.
Sem parar para
ajudá-la, ele virou e entrou na travessa da rua principal da cidade. Com a
caixa ainda grudada ao corpo, um beco apareceu diante de seus olhos. Naquela
rua não havia nenhum comércio, apenas paredes de tijolos e poucas pessoas.
Dessa vez, o
vento ficou mais intenso e o guarda-chuva começou a perder a sua utilidade. Um
clarão repentino anunciou a chegada dos raios. Gustavo parou assustado. Água
caía generosamente do céu, luz ia e vinha como as ondas do mar.
II
“ O barulho da
chuva se parece com uma canção de ninar.”
Gustavo fechou
a porta com a roupa toda molhada e logo acendeu a luz da sala.
O cômodo
simples dispunha de uma mesa central e alguns eletrodomésticos. O barulho da
chuva continuava a incomodá-lo. Ele colocou a caixa em cima da mesa e ficou
contemplando-a por alguns instantes.
A caixa tinha
forma retangular, cerca de sete centímetros de base e quatro centímetros de
altura. Suas cores vermelho, amarelo e preto eram distribuídas de forma
horizontal na parte superior da caixa. O resto aderia aos tons de marrom.
Os olhos de
Gustavo ficaram surpresos quando outra pessoa entrou na sala.
- Você trouxe o que eu lhe pedi? – perguntou
sua esposa.
Gotas de chuva
batiam na janela, tornando embaraçosa a visão da rua.
Gustavo
Lemarck se aproximou da esposa, coçou a cabeça e a tocou no braço antes de
responder:
- Claro, meu
amor. Nem uma chuva de granizo seria capaz de me impedir.
Um trovão
cortou o silêncio.
A esposa tirou,
gentilmente, a mão do marido de seu braço e encaminhou-se lentamente até a
caixa, que repousava de forma triunfal no centro da mesa.
“Ela é tão
bonita”, pensou fascinada. “Tem cheiro de terra molhada”.
Goteiras
começaram a se formar no teto rachado.
Realizada, a
esposa sorriu e com suas mãos delicadas, abriu a caixa.
III
Olhos de
ressaca admiravam o conteúdo da caixa, sua íris verde brilhava fortemente como
um parque em dias ensolarados.
Entre as cores
da realidade e da imaginação, ela podia sentir o sol aquecendo-lhe a pele lisa
e branca, o cheiro das flores silvestres perfumarem o ambiente hostil. A Terra
parecia em constante movimento, girando e girando em torno de si mesma ou em
torno do sol.
Parecia futuro,
mas era passado. Concretizava esperança e ao mesmo tempo angústia.
Estranhos
perdidos no tempo. Na chuva, na neve ou no sol. Nos segundos ou nos dias
outonais que o vento devastou.
As unhas da
esposa, Isabela Lemarck, tocaram o conteúdo da caixa carinhosamente.
- Estão
congelados- lamentou.
Gustavo tirou
os cabelos negros de perto dos olhos antes de encostar-se a sua amada e
abraçar-lhe a cintura.
- Senhor e
senhora Lemarck- sussurrou em seu ouvido- Lembra dessas palavras?
- Como posso
esquecer- suspirou ela enquanto fechava os olhos- Todo dia me recordo daqueles
votos, da importância daquele momento... Como se fosse o início de tudo e não o
seu fim.
- Não me diga
que perdeu a fé – suplicou Gustavo, prendendo-a mais forte de encontro ao seu
corpo.
- Não perdi
somente a fé- declarou- Mas a vontade de viver- uma lágrima escorreu do seu
rosto.
Gustavo aos
poucos se afastou.
Isabela
observou as fotos que tinham dentro da caixa. Sorrisos mostravam o ápice da
realização. O pior dos finais felizes é que suas continuações sempre são
assombradas por decepções e incertezas, visto que nenhuma felicidade se
perpetuará em vossos corações.
Suas mãos pegaram
uma caixa de fósforos no bolso.
Sem piedade,
Isabela ateou fogo a linda caixa. Labaredas engoliram as fotos raivosamente
transformando-as em cinzas.
E tudo começou
em gelo e terminou em fogo.
Chuva escorria
pela veneziana como se o universo chorasse pelo tempo perdido.
IV
Isabela já
estava cama, pronta para dormir.
O marido apagou
o fogo com a água abundante em Jumandia. Daquelas fotos, não restava o menor
vestígio de quem ele realmente fora um dia.
Devastado, o
futuro parecia aterrorizante.
Gustavo não
sabia muito bem como agir, de repente apareceu na soleira da porta do quarto.
- O que fizemos?
– perguntou angustiado.
- Enterramos uma
história para viver outra- respondeu Isabela de forma natural.
- E como nós
ficamos?
- Prontos para
renascer.
- Como se nada
tivesse acontecido?
- Como se tudo
tivesse acontecido- pronunciou lentamente.
Gustavo Lemarck
começou a andar.
- Por favor, apague a luz- disse a esposa
jovialmente.
O marido a
observou por três segundos antes de acionar a escuridão.