1 de ago. de 2014

A Caixa


    I
 “- Por favor, apague a luz- disse a esposa jovialmente.
   O marido a observou por três segundos antes de acionar a escuridão.”

   Realmente não era uma das tardes mais agradáveis em Jumandia, a cidade conheceu um dos dias mais frios dos últimos dez anos, e para piorar a situação, chovia fortemente e ininterruptamente.
  Os moradores se irritavam facilmente com o clima. Para alguns, o principal motivo era a água que entrava no sapato, sandália ou qualquer tipo de nome dado para um calçado, encharcando as meias. Ninguém conseguia se prevenir da chuva na parte inferior da calça jeans. Os guarda-chuvas entraram na moda instantaneamente, sem a menor necessidade de um glamoroso desfile.
  Entre uma multidão de pessoas que corria por diversas direções na rua mais movimentada da cidade, destacava-se um guarda-chuva preto carregado por Gustavo Lemarck.
  Os ponteiros da torre do relógio, ao final da rua, registravam quinze horas quando Gustavo, com sua camisa de lã preta e sua calça jeans molhada, atravessava a livraria “Sopa de Letras”. Em uma das mãos ele segurava uma caixa apoiada ao corpo, com a outra o tradicional guarda-chuva. Por dez segundos ele parou e observou a vitrine da livraria, depois continuou a sua caminhada até a primeira esquina, onde esbarrou em uma garota com um guarda-chuva rosa.
  - Você está louco- Esbravejou ela enquanto pegava as pastas que havia deixado cair no chão.
  Sem parar para ajudá-la, ele virou e entrou na travessa da rua principal da cidade. Com a caixa ainda grudada ao corpo, um beco apareceu diante de seus olhos. Naquela rua não havia nenhum comércio, apenas paredes de tijolos e poucas pessoas.
   Dessa vez, o vento ficou mais intenso e o guarda-chuva começou a perder a sua utilidade. Um clarão repentino anunciou a chegada dos raios. Gustavo parou assustado. Água caía generosamente do céu, luz ia e vinha como as ondas do mar.
  
   II
   “ O barulho da chuva se parece com uma canção de ninar.”
 
   Gustavo fechou a porta com a roupa toda molhada e logo acendeu a luz da sala.
   O cômodo simples dispunha de uma mesa central e alguns eletrodomésticos. O barulho da chuva continuava a incomodá-lo. Ele colocou a caixa em cima da mesa e ficou contemplando-a por alguns instantes.
   A caixa tinha forma retangular, cerca de sete centímetros de base e quatro centímetros de altura. Suas cores vermelho, amarelo e preto eram distribuídas de forma horizontal na parte superior da caixa. O resto aderia aos tons de marrom.
   Os olhos de Gustavo ficaram surpresos quando outra pessoa entrou na sala.
   - Você trouxe o que eu lhe pedi? – perguntou sua esposa.
   Gotas de chuva batiam na janela, tornando embaraçosa a visão da rua.
   Gustavo Lemarck se aproximou da esposa, coçou a cabeça e a tocou no braço antes de responder:
   - Claro, meu amor. Nem uma chuva de granizo seria capaz de me impedir.
   Um trovão cortou o silêncio.
   A esposa tirou, gentilmente, a mão do marido de seu braço e encaminhou-se lentamente até a caixa, que repousava de forma triunfal no centro da mesa.
   “Ela é tão bonita”, pensou fascinada. “Tem cheiro de terra molhada”.
    Goteiras começaram a se formar no teto rachado.
    Realizada, a esposa sorriu e com suas mãos delicadas, abriu a caixa.
 
   III
   Olhos de ressaca admiravam o conteúdo da caixa, sua íris verde brilhava fortemente como um parque em dias ensolarados.
   Entre as cores da realidade e da imaginação, ela podia sentir o sol aquecendo-lhe a pele lisa e branca, o cheiro das flores silvestres perfumarem o ambiente hostil. A Terra parecia em constante movimento, girando e girando em torno de si mesma ou em torno do sol.
  Parecia futuro, mas era passado. Concretizava esperança e ao mesmo tempo angústia.
  Estranhos perdidos no tempo. Na chuva, na neve ou no sol. Nos segundos ou nos dias outonais que o vento devastou.
  As unhas da esposa, Isabela Lemarck, tocaram o conteúdo da caixa carinhosamente.
  - Estão congelados- lamentou.
  Gustavo tirou os cabelos negros de perto dos olhos antes de encostar-se a sua amada e abraçar-lhe a cintura.
  - Senhor e senhora Lemarck- sussurrou em seu ouvido- Lembra dessas palavras?
  - Como posso esquecer- suspirou ela enquanto fechava os olhos- Todo dia me recordo daqueles votos, da importância daquele momento... Como se fosse o início de tudo e não o seu fim.
  - Não me diga que perdeu a fé – suplicou Gustavo, prendendo-a mais forte de encontro ao seu corpo.
  - Não perdi somente a fé- declarou- Mas a vontade de viver- uma lágrima escorreu do seu rosto.
  Gustavo aos poucos se afastou.
  Isabela observou as fotos que tinham dentro da caixa. Sorrisos mostravam o ápice da realização. O pior dos finais felizes é que suas continuações sempre são assombradas por decepções e incertezas, visto que nenhuma felicidade se perpetuará em vossos corações.
  Suas mãos pegaram uma caixa de fósforos no bolso.
  Sem piedade, Isabela ateou fogo a linda caixa. Labaredas engoliram as fotos raivosamente transformando-as em cinzas. 
  E tudo começou em gelo e terminou em fogo.
  Chuva escorria pela veneziana como se o universo chorasse pelo tempo perdido.

 IV
 Isabela já estava cama, pronta para dormir.
 O marido apagou o fogo com a água abundante em Jumandia. Daquelas fotos, não restava o menor vestígio de quem ele realmente fora um dia.
 Devastado, o futuro parecia aterrorizante.
 Gustavo não sabia muito bem como agir, de repente apareceu na soleira da porta do quarto.
 - O que fizemos? – perguntou angustiado.
 - Enterramos uma história para viver outra- respondeu Isabela de forma natural.
 - E como nós ficamos?
 - Prontos para renascer.
 - Como se nada tivesse acontecido?
 - Como se tudo tivesse acontecido- pronunciou lentamente.
 Gustavo Lemarck começou a andar.
  - Por favor, apague a luz- disse a esposa jovialmente.
  O marido a observou por três segundos antes de acionar a escuridão.