Imagem: Carey Mulligan no filme "O Grande Gatsby"
Sob a luz do luar, o cavalheiro Lorde Harrison tirou um
disco empoeirado do LP e colocou no toca-discos, abaixou a agulha e Wake Up
Alone de Amy Winehouse ecoou pelo quarto elegante de bilhões de metros
quadrados.
Seguindo o ritmo da
música, seus pés começaram a se movimentar como numa dança a dois.
Podia sentir o
cheiro de Madame Daisy naquele primeiro encontro. Os dois sobre a ponte de
Edimburgo em meio à lua cheia. Estavam tão próximos, estavam tão distantes.
Vislumbrava seu sorriso, sua graça. Os olhos transmitiam mil e uma verdades.
Eram apaixonantes, pensou ele.
- Está frio- sussurrou ela aquele dia, diante
da magia das cidades escocesas.
Lorde Harrison
agarrou sua luva de pelica branca e levou-a ao rosto, junto com o anel de
brilhante mais irradiante que o luar.
- Pegue minha
jaqueta- ele tirou-a rapidamente e colocou sobre os ombros nus de Mademoiselle
Daisy.
Seus olhares se
encontraram como dezenas de bolas de fogo que enfeitiçavam o céu. Os olhos de
ambos eram escuros. Os dela como uma pedra, os dele como carvão.
- Obrigada.
Depois tudo se foi
como num passe de mágica. A carruagem de sua família chegou para tirar-lhe de
suas garras, de seu amor, até aquele dia.
Mensagens foram
trocadas ao longo de toda a semana. Poesias, elogios e, sobretudo saudade,
contornavam cada palavra escrita.
A música estava
quase no fim, levando o jovem Harrison ao presente. Diante do espelho observava
atentamente quais atributos conseguiriam conquistar Lady Daisy. Seriam seus
olhos bondosos? Seu sorriso sapeca ou seus traços hereditários?
Foi ao closet e
pegou seu macacão cor mostarda, ele sempre estava reservado para as melhores
ocasiões. Junto com a gravata-borboleta azul-escuro.
Pontualmente às
vinte e uma horas, Lorde Harrison desceu pelas escadas de mármore até a sala de
jantar, iluminada a luz de velas. O garçom já estava devidamente posicionado.
Os ponteiros do relógio central do século XIX não paravam de girar. Voltas e
mais voltas, de repente se sentiu tonto, perdeu a conta. Até que no meio de
certo devaneio com seus piores pesadelos, a campainha soou alarmante. Em vez de
um, foram três toques apressados. Ininterruptos.
Lorde Harrison
prestou atenção à posição dos ponteiros. Vinte e uma e vinte minutos.
Quando ela entrou,
os mil e duzentos segundos de atraso se perderam em meio à tamanha confusão.
Teve certeza que era impossível odiá-la.
Um chapéu amarelo, com uma margarida presa ao
centro, cobria-lhe os cabelos dourados que caíam até o queixo. Um vestido preto
e brilhante revestia o corpo magro e esguio. A sua elegância a cada passo, seu
olhar tão meigo, suas palavras doces. Estava praticamente hipnotizado enquanto
ela se aproximava.
Meu Deus. Ele se
levantou e seu lábio encontrou o rosto macio de Miss Daisy.
- Bem-vinda –
arrastou uma cadeira para que ela se senta-se e depois empurrou- Não sabe a
imensa satisfação que eu tenho em recebê-la.
- Primeiro gostaria
de me desculpar pelo atraso- pronunciou em meio a um discreto sorriso- Depois
gostaria de agradecer o carinho. Parece tudo tão levemente organizado e
preciso. Deslumbrante como as três luas que reinam no céu. Não sei se mereço
tamanha cerimônia.
- Não deixe de
apreciar o valor que tem.
- Seria impossível,
Lorde Harrison. Se eu apreciasse não seria digna de superação. Apenas de
reparação.
- Não consigo ver
como um anjo pode ser mais perfeito.
- Um anjo sem asas-
completou Lady Daisy- Cuidado! Posso ser um anjo caído- e arregalou os olhos.
Os dois caíram na
gargalhada dos ricos. Nada espalhafatosa. Fina e elegante.
O garçom começou a
colocar vinho na taça de Madeimoselle Daisy. Quando chegou a metade ela disse:
- Obrigada. Não
quero beber muito.
A taça de Harrison
ficou cheia, mas não até a boca.
Os dois brindaram.
Nada específico, já tinham muita coisa na vida. O simples fato de brindar era o
mais importante. O contato das taças, o tim-tim.
Um gole foi o
suficiente para esquentar a garganta. Daisy girava a taça em sentido circular e
depois cheirava o vinho, sentia o seu aroma.
- Sinto o odor da
vida fácil. De sua grandeza, essência.
- Vida fácil. Isso
existe?- sussurrou para ela com a mão próxima a dela, seus olhos pareciam
hipnotizados.
- Quem sabe? –
suspirou.
Os dedos dele
vagarosamente foram de encontro à mão de Mademoiselle Daisy, atraídos como um
imã, suas peles se tocaram e ele pode sentir o calor que emanava daquele tecido
fino, que escondia as veias que bombeavam o sangue de seu delicado coração.
Enlouquecido, ele segurou a sua mão com força.
- Preciso te fazer
uma pergunta.
Os olhos de Daisy
brilharam.
- Sim! Diga-
respondeu entusiasmada.
Uma voz em seu
interior dizia: “Não coloque tudo a perder. Seu idiota. Mais uma vez enfiando
os pés pelas mãos. Calma, tudo vai dar certo”
- Você gosta de
Chicken Pie? – vomitou as palavras da forma mais rápida possível. Acabou
notando certo desapontamento. Será que coloquei tudo a perder? Pensou- É que
tivemos um probleminha com o outro prato. A nossa planta carnívora resolveu
fazer um lanchinho algumas horas antes de você chegar.
- Gosto sim. Não
tem o menor problema.
O garçom colocou os pratos na mesa.
- Parece estar saboroso-
disse Daisy com água na boca.
- Prove! Para
comprovar a sua incerteza- seus pés se tocaram por baixo da mesa.
- Hm. Sua planta
carnívora merece muitos agradecimentos- disse enquanto limpava os lábios no
guardanapo- Está uma delícia.
Os segundos passaram
com mística em pleno inverno. As risadas ecoavam, os olhares brilhavam, o
assunto brotava de todos os cantos, prontos para serem semeados com um pequeno
gole de vinho. Algumas chamas se apagaram quando Lorde Harrison teve um grande
ideia após o jantar. Levou Mistress Daisy até o salão de música.
Com o teto aberto
para o mundo. Os dois podiam apreciar as estrelas da noite enquanto dançavam
colados. Bolas brancas flutuavam pelo cômodo como num rico sonho. O pianista,
funcionário de Lorde Harrison, tocava músicas lentas e apaixonantes.
Próximos. O rosto de
Mademoiselle Daisy encostava-se ao pescoço de Harrison, que de vez em quando se
curvava para que os dois ficassem do mesmo tamanho.
- E agora? O que
você espera? – perguntou ele baixinho.
- Do futuro?
- Não. Do presente.
- Não tenho tempo
para pensar- disse ela entre risos- Quem sabe ele não me surpreenda.
Sem querer Lorde
Harrison pisou no pé da jovem dama.
- Opa. Desculpa.
Isso não foi programado.
- Nem a noite bela
e perfeita? Parecia detalhadamente planejada.
- Não com tamanha
perfeição- murmurrou em seu ouvido.
No meio da dança, girou o corpo de Daisy. Os
dois pareciam distantes por uma fração de segundos. Depois seu braço a puxou de
volta para seu calor.
Primeiro veio à
permissão com o olhar. Depois levemente veio a coragem, em seguida o beijo.
Os lábios se
esbarraram e se abriram. Fogos de artifícios pintaram o céu das mais variadas
cores. Os corações batiam com maior pressa, anseio. Sentiam-se frágeis,
vulneráveis. O tempo era eterno, dançava sem desperdício, sem razão, sem
pressa. Unitárias emoções transbordavam pelos pensamentos de fumaça prateada.
Nessas horas, não consigo fazer uma rima que remete tamanha realização. O
reflexo da lagoa prestes a ser congelada ou o ar rarefeito da colina mais alta
do mundo ficavam apenas no cartão postal. O mais importante era fotografar o
salão, aquele átimo inesquecível, pronto para se acabar.
- Então- disse ele
com lábios manchados de batom- O que diria do passado?
- Não consigo pensar
no passado sem antes pensar no futuro- E beijou-lhe uma, duas, três, quatro
vezes. Beijos eram desperdiçados pela ampulheta do tempo. Cada um menos
especial que o outro. O primeiro imbatível e perfeito.
Sabe, não ligarei se
é o primeiro ou último, desde que seja com Mademoiselle Daisy, pensou Lorde
Harrison.
- Consegue pensar
num futuro ainda mais incrível? – perguntou madame Daisy.
Lorde Harrison
fechou os olhos.
- Imagino um casal
de mãos dadas. Fazendo confissões, próximos a lareira num dia frio, com os
corpos cobertos durante a noite. Os músculos preparados para acalentarem o amor
da madrugada. E um dia se passou, e outro e mais outro como as folhas do outono
que caíam da macieira. Corriam pelo parque esverdeado, pelo sol do verão. E de
repente o fruto do amor, o primeiro filho, correndo pelas escadas, fazendo
bagunça. E mesmo mediante o caos, o casal continuava feliz, porque não seria
uma mera briga ou um pequeno obstáculo que eles não iriam superar. Depois veio
o segundo, o terceiro o quarto filho. Os problemas cresciam de forma
exponencial, contudo a noite infindável permanecia repleta de amor. Envelheceram juntos e bem, saudáveis de amor.
E quando ela perguntou para o marido, beirando os setenta anos, o que havia achado
do passado, ele respondeu com um leve suspiro: No passado podia imaginar um
futuro belo, mas não com tamanha perfeição. A vida foi gentil, e o passado
rejuvenescedor. O futuro, quatro sementes e mais a brisa gelada de mais uma
manhã.
- Nesse futuro
cabem duas pessoas de carne e osso?
Lorde Harrison
abriu os olhos e despejou seu charme.
- Só se for nós
dois. Nenhuma pessoa pode escrever uma história de outra. Nessa elipse que
habitamos, falta um pouco de coragem e de imaginação.
Nesse instante, um
pernilongo rosa, que rondava pelo salão, morde o pescoço da Madeimoselle e sai voando em busca de
destruir outro amor. Aquela mordida corroí as estruturas de seu pensamento. Uma
náusea, tontura, invade seu cérebro. O mundo gira e gira pronto para desabar.
- Sinto que estou
perdida. Estou tonta- disse Daisy em meio a uma nota triste do piano.
- Volte para o
presente. Não vale a pena viver o futuro, não por enquanto- contínua Lorde Harrison a filosofar- O tempo é capaz de
trilhar vários labirintos, diversas ilusões para te esconder o bem mais
precioso. O simples fato de viver o presente momento.
Daisy, desesperada, se virou e
arrastou o vestido pelo piso do salão, preto e branco, como um tabuleiro de
xadrez. Andou com pressa, abriu as imensas portas de vidro e encontrou alguns
coelhos brancos apressados, cigarras fumando e urubus dourados. Era dia. Aviões
de guerra invadiam o céu azul bebê. Parou para descansar numa rocha próxima a
lagoa. Sua respiração começou a fraquejar, se sentia frágil. Olhou para o sol,
desmanchou-se em ilusão.
“Querida
Mademoiselle Daisy,
De todos os contos de fadas que existem, a
maioria beira ao inevitável, incompreensível.
Nessa manhã, encontrei seu vestido boiando
pelo lago próximo de casa. Logo, a morte invadiu a minha mente. Não sei se
nesse exato instante, seu corpo se encontra no espaço, sem oxigênio, sem vida,
ou se virou o pólen que embeleza as flores das belas manhãs.
Só sei de uma coisa, estou sozinho.
Acordei sozinho em minha cama. Sua pressa, seu medo me assustou. Passado,
presente e futuro pareciam entrelaçados. Fui pego de surpresa, o sopro do vento
devastou meu corpo jovem e me vi com setenta anos, como na história daquele
casal que te contei.
Dessa vez, não havia ninguém com quem eu
pudesse compartilhar o simples ato de existir. Nem sei se te beijei se senti seu
corpo colado ao meu.
Espero que meus unicórnios tenham te levado
para um lugar seguro. Um lugar que não existe limites, muito menos o maldito
tempo, pronto para nos enterrar em terra suja. Sepultar o nosso amor.
Do seu,
Lorde Harrison.