
- Nem sei se estou bem – diz a atendente de um supermercado
que acaba de brigar com o marido.
Seus olhos vazios
encontram os da compradora, uma senhora idosa na casa dos setenta anos.
- Como disse? –
perguntou à senhora.
- CPF na nota? –
pergunta a atendente, com um sorriso forçado estampado na cara.
E assim, os minutos
passam.
- Bom dia...
- Boa tarde...
- Boa noite...
Os ponteiros avançam
lentamente no sentido da liberdade extrema. Até que eles a liberam de seu
uniforme suado, dos seus dedos calejados, da sua falta de humor, da sua
moderada situação.
Chegou o momento de
respirar o ar puro do lado de fora... Sentir teu cheiro, exaltar seu frio ou
calor; mergulhar em seus desejos profundos até a mais infinita desilusão. O lado
de fora nunca pareceu tão aconchegante.
Ruas sinuosas e
pessoas sem rostos... Beco sem saída.
Vontade de fazer o
errado, de explodir o mundo em mil pedaços... Sinal de justiça/injustiça.
Ela queria deitar,
queria dormir... Mas não podia.
Estava cansada, estava exausta... Mas
funcionava.
Quando abriu a
porta de casa, sentiu o sapato apertar as pontas dos pés.
O marido, um cara
gordo e baixo, começou a anunciar mais um milhão de problemas. Era o que
faltava?
“As interligações,
os esforços, não valiam de nada? O que é isso? Não posso ser o fantoche da
história? A atriz do cinema? Não posso me calar? Não posso nem ao menos...
EXPLODIR?”
- Você está me
ouvindo? – pergunta o marido.
“Estou cansada,
estou cheia.”
- Estou sim, pode
falar querido.
- Estamos
precisando de uma faxineira, essa casa está uma bagunça.
Então, porque você
simplesmente não tira essa bunda nojenta da cadeira e me ajuda a limpar?
- Eu vou arrumar, amor. Acabei de chegar.
- Você sempre diz
isso. Não está dando. Você não percebe que não está dando conta das suas
funções?
“Sou um objeto
perdendo a data da validade. Não presto pra nada, quem sabe enferrujada?”
As reclamações passam, sempre passam. À noite
ele a procura na cama, com a mão boba debaixo do cobertor, percorre os dedos
pelo lençol até encontrar a fonte pra saciar os seus desejos.
Ela pensa em não
deixar, em gritar. O coração bate mais forte, num turbilhão de emoções
conflituosas. De repente falta ar. Nervosa, ela fica paralisada.
O marido, fedido e
suado como um porco a alcança, no final... monta.
Ela olha para o céu,
e encontra o rosto endiabrado do seu marido.
Ela olha para as
estrelas, e encontra um teto rachado.
Ela olha para o
escuro, e enxerga o relógio.
Era hora de
ser mulher, de trabalhar, de cuidar da casa, do marido. Acordou cedo, pronta para
servir.