23 de mar. de 2013

A Estrada da Perdição


 Quilômetros de estradas, asfaltos. Histórias contadas no carro vermelho de verão, adrenalina pura com o medidor do velocímetro e de seus corpos em sintonia que pareciam um só.
 Fumaça branca saía da boca dos sonhadores. Bebida alcoólica era apreciada como se fosse água. Sexo era diversão.
  Lilian colocava as mãos para fora do carro e sentia a vida abrindo as portas da liberdade. Nua dos pés a cabeça, Antônio já havia roubado a sua ingenuidade, sentia bocas quentes explorarem os seus mamilos. Suas sensações abstratas pareciam que iriam explodir.  
  Dedos tocavam-na no botão que ardia-lhe a mente. Resolveu fumar um cigarro e colocar a cabeça para fora do carro. Queria o impossível, queria o proibido.
   Antônio passou sua fumaça para a boca de Lilian que começou a rir.
   - Isso é tão divertido. Você tinha que ver quando eu passei para a Liza, ela não acreditou quando nossos lábios se encontraram. Quando minha língua massageou a dela com ternura, como se não fossemos amigas, e sim amantes.
  - Calma, calma- disse Antônio quando Lilian começou a tossir- O que você usou dessa vez, gatinha?
  Lilian ficou meio zonza, deitou a cabeça no peito nu de Antônio e entrou num mundo meio abstrato. Vislumbrou o azul queimando a água do interior da seca. Lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Nem o palhaço da sua infância conseguiu despertar um sorriso de alegria, só sentia liberdade, apenas liberdade. Estava livre para morrer!
  Sua respiração foi começando a ficar mais acelerada, como aquele carro que proporcionava tantas aventuras, tantas alegrias. Os seios fartos já não saciavam nenhuma língua fresca, sua fertilidade estava abandonada. Antônio, com seus músculos densos e sua barba feroz, a olhava como se ela fosse um alienígena. Todos seus colegas de estrada a observavam com um olhar de pena. Como se a liberdade pudesse tirar-lhe a vida.
  - EU NÃO VOU MORRER!!- gritou ela- EU NÃO VOU!!
  A protagonista da história mandou o motorista, Jean, parar o carro. Pegou as suas roupas no banco e começou a se vestir. Agarrou uma sacola com cocaína e tentou abrir a porta do carro, quando foi impedida pelo forte braço de Antônio.
  - Onde você pensa que vai?- perguntou ele com os olhos bravos como os de um leão.
  - Voar- disse Lilian baixinho, com as mãos trêmulas e os olhos vermelhos.
  Ele colocou os dedos em seu queixo e disse de uma forma autoritária e assustadora.
  - Você não pode abandonar essa aventura. Não vou deixá-la jogar uma história tão linda no lixo, usa o pó, usa. Cheira que você se sentirá melhor. Cheira- terminou ele gentilmente, levando o pó para perto de suas narinas.
  Lilian tirou os seus cabelos ruivos como o fogo do rosto e cheirou o pó branco. A sensação foi instantânea. Conseguiu encontrar as asas que lhe faltavam para voar. Sentiu alegria explodir do corpo pelo vício, se sentiu prisioneira aos sentimentos. Engaiolada por sensações contraditórias. Um pássaro que não podia voar.
  Podia voar, mas não podia.
  O gosto da liberdade perdeu-se por entre os lábios. As luzes da balada pareciam tristes, a multidão parecia irracional. Queria chorar. Estava rodeada de gente, porém se sentia sozinha.
   - Porque me olham desse jeito?- perguntou ela para os outros quatro aventureiros.
   Todos a contemplavam assustados.
   O carro parou, parecia que a aventura terminava ali. Os beijos calientes pareciam distantes, a amizade havia acabado. Assim como o seu suave frescor.
   Antônio colocou o dedo indicador em frente aos lábios, fazendo um sinal de silêncio. Pegou-a no colo e depositou-a no asfalto. Lilian já não conseguia sentir o seu corpo, apenas formigamento.
   - Para onde vamos meu, amor?- suplicou ela com olhos esperançosos de criança.
   - Você não vai a lugar nenhum- respondeu Antônio- A sua jornada acaba aqui.
   - E as festas, e a diversão? Eram tudo mentira? E quando você penetrou a minha alma e fez juras de amor?
   - Não passou de uma ilusão, baby. Seu corpo não passou de uma droga para satisfazer o meu tesão. Nossas conversas nada mais eram do que um incentivo para saber que a minha vida era melhor que a sua. As festas estavam cheias de pessoas que não se importam em nada com a sua vida, tampouco com o seu triste fim.
   - E o Jean, a Sara e o Francisco? Eles também não eram meus amigos?
   - Não existem amigos nessa vida. Vivemos num mundo predatório. Cada um por si tentando satisfazer o seu desejo. Somos objetos, peças de calor humano, pedaços de carne que se acham importantes. Mas não somos ninguém. Nossa vida é um lixo, a liberdade é um lixo. Tenho inveja de vê-la morrer.
  - Morrer?- perguntou ela assustada- Eu não vou morrer!
  - Não se preocupe, amor- disse ele apaixonado- No final essa é sempre a solução!
  Antônio pegou um isqueiro no bolso, acendeu-o e estendeu o seu braço para que a chama pudesse beijar os cabelos ruivos de Lilian, que estava pálida e seca de terror, de desilusão, de drogas e decepções. Podia sentir o fogo consumindo o seu corpo que dançava com tanta fantasiosa alegria. Seus olhos que despertavam os pensamentos dos rapazes, os mesmos olhos que causaram extrema felicidade ao serem contemplados por seus pais.
   A chama que um dia sorriu, que um dia chorou. Os gritos de agonia, semelhantes com o sopro que lhe trouxe a vida na maternidade. O primeiro momento de tristeza, onde o mundo parecia cheio de armadilhas e assombrações. O primeiro momento de alegria, onde o mundo parecia encantado e cheio de diversões. Os amigos que mostravam tanta confiança, os inimigos que demonstravam tanto desprezo. Os ensinamentos...
   A estrada da perdição parecia um caminho sem volta. Uma falsa sensação de conforto. Beber cerveja para se sentir feliz. Fumar para poder voar. E a vida continua oca como se não tivesse quem amar.
   O fogo começava a destruir as ideias da sociedade, assim como a pele de Lilian, encolhida com a dor que a transformava em cinza e fumaça. Seu corpo aos poucos virava pó, o seu rosto já era beijado pelas chamas, assim como o seu corpo, abraçado pelo calor.
  Antônio, com os olhos rodeados de escuridão, via tudo perplexo. Lilian parecia querer se vingar com a altura do fogo que parecia dançar de tortura. A alma livre para mergulhar em águas profundas e filosóficas sobre o real motivo da nossa existência.
   Todo esse texto corrido e torto. Toda essa história aos olhos de Antônio. Todo esse horror descrito em palavras tristes. Aos poucos os personagens dessa história perdiam o sentido, beirando a infantilidade e confusão. Alguns andando pela margem do rio da inexistência, outros eram tão reais quanto algumas revelações.
    A paisagem começava a escurecer. Antônio não conseguia mais observar o fogo que atormentou a sua fria razão. O coração do protagonista começou a bater mais forte, mais forte.
  TUM, TUM, TUM...
   O blecaute chegou a tranquilizar um pouco o seu coração.
  E depois das trevas veio a salvação. A luz atingiu os seus olhos, a realidade batia na porta da sua compreensão.
  - Amor- disse Sara que quando viu que o marido havia acabado de despertar, sentou na beirada da cama e beijou-lhe os lábios- Não se esqueça do nosso compromisso ás 15 horas no Blue House- Ela acariciou gentilmente os cabelos de Antônio, fez um rosto de ternura, depositou-lhe mais um beijo e saiu do quarto.
  Lentamente, Antônio foi para o banheiro e lavou o rosto. Estava exausto, parecia que havia vivido uma aventura cheia de perigos. Ficou debruçado na pia, confuso. Sua mente começou a vagar pela reflexão. Uma tremenda dor de cabeça começou a se manifestar.
  O barulho do seu celular tirou-lhe do devaneio. Pegou o aparelho numas roupas suas jogadas no chão do banheiro. A mensagem era de um número desconhecido.
  “ Ás 20horas na Praia da Salvação. Te amo muito. L”
  Antônio apertou o celular com força, foi para a varanda do quarto de roupão e atacou o aparelho na piscina com a maior força possível.
   Voltou para o quarto e começou a procurar uma maleta desesperadamente. Olhou por baixo da cama luxuosa, fechou as cortinas, trancou a porta e começou a mexer no armário. Logo encontrou uma maleta com senha, de executivos. Colocou o objeto sob a mesa e virou os números para colocar a senha 1809.
  A mala abriu, e vários sacos com um pó branco apareceram diante da sua visão.
  Fechou os olhos e uma dor no peito demonstrou a sua decepção. Era tudo verdade. Sentou na cama e colocou as mãos sobre o rosto num sinal de lamentação.
  Levantou-se e começou a pegar algumas roupas no armário, vestiu-se rapidamente com as mãos trêmulas. Nesse momento seu mundo começou a girar. Antônio ficou tonto, sentia o chão instável e caiu. Quando seu rosto encontrou o chão, ele havia apagado.
  
  Blue House, 16 horas
  - Porque demorou tanto?- perguntou Sara assustada. Quando olhou mais atentamente para Antônio, soltou um grunhido e perguntou- O que aconteceu com o seu rosto, querido?
  Com uma respiração rápida e com voz de doente ele respondeu:
  - Bati no armário do nosso quarto. Desculpa filhos- disse ele virando-se para os dois garotos pequenos do outro lado da mesa- Papai estava com uma dor de cabeça terrível.
  - Liguei para você várias vezes- Sara estava assustada- Porque você não respondeu?
  - O Sérgio me ligou, tive que ficar discutindo vários assuntos importantes do escritório.
  Antônio sentou ao lado de Sara. Ele ficou observando o filho brincando com a batata frita com ketchup, fingindo que ela era um avião.
  - Desculpa, Tony. Francisco e Jean não paravam de reclamar de fome, acabei pedindo um lanche para os dois.
  - Não precisa se preocupar, Sah. Vou pedir um lanche ali no balcão. Você me acompanha?
  - Lanche, Tony? Não somos mais crianças- Com a voz enrolada, grossa e com os olhos arregalados ela continuou- Eu sei a verdade.
  De repente o brilho dos olhos do protagonista se apagaram. Um vento gelado atingiu a sua pele. Começou a observar tudo em câmera lenta. A “batata avião” lentamente indo para a boca de Jean, Francisco piscando os olhos e com uma gota de suco no canto dos lábios e Sarah que o olhava atentamente.
  - O que você disse?- perguntou ele, intrigado.
  - Nada. Só estou aguardando a sua decisão. Vamos ou não vamos comer lanche?
  - Já volto.
  Antônio caminhou até o banheiro masculino iluminado por uma luz azul. Quando entrou viu que não havia ninguém. Apalpou o casaco e encontrou um saco plástico. Entrou na cabine e depositou um pouco de pó branco sobre a mão. Cheirou e depois olhou para o teto.
  A sensação era intensa e angustiante, queria mais e mais. Mas não podia.
  Jogou o resto do conteúdo no sanitário e apertou a descarga. Saiu da cabine e olhou os olhos vermelho no espelho. Não era mais ele, não era ninguém. Jogou água fresca no rosto.
  Voltou para a mesa onde estava a sua família e disse:
  - Preciso ir, estou com uma dor de cabeça insuportável. Desculpa.
  -Espera- Sarah agarrou a sua manga antes que ele pudesse escapar- Eu te levo para o hospital. Os meninos estavam tão ansiosos por esse momento. Não estrague tudo novamente. Por favor- ela implorou.
  - Preciso ir, preciso ir- finalizou ele rapidamente.
  - Por favor- gritou ela, e uma lágrima despertou de seus olhos.
  - Preciso ir, preciso ir.
  Ela largou o seu braço, como uma criança abandona o seu brinquedo. A luz azul se apagou.

  Praia da Salvação, 20 horas
   Quando viu aquela mulher com os cabelos de fogo encostada no poste. Antônio não tinha a menor dúvida.
   - Lilian- disse ele. Ela virou-se e ele teve certeza que era ela, que abriu um enorme sorriso.
   Seus cabelos em chama, sua boca impecável e sexy. Lembrou-se dos momentos em que passavam na cama, onde seus lábios podiam engolir os dela, seu membro vil e duro penetrava aquele corpo lindo e escultural, que implorava por prazer. Aqueles sussurros, aqueles pecados. A língua que esquentava a sua pele e que lhe causava arrepios.
   Ela começou a se aproximar, e ele se esquivou.
   - O que você quer?- Seus olhos escuros como os de um leão.
   - Voar- disse ela alegremente. Colocando o seu corpo em contato com o dele.
   Lilian ficou com os seus lábios bem próximos dos de Antônio. Podia sentir seu hálito quente e sua respiração lenta quando largou a sedução e começou a correr de encontro ao mar.
  Antônio percebeu a armadilha e correu rapidamente em direção a mulher que lhe causava transtornos e confusão. Alcançou-a facilmente, derrubou-a e os dois se enroscaram na areia. Até que ele ficou por cima dela e perguntou:
  - Porque você fez isso comigo?
  - Isso o que? – perguntou ela com os olhos surpresos.
  - Matar a minha vida. Mostrar os meus vícios. Explorar o que há de pior em mim.
  - Você está louco? Foi você que me seduziu. Que me levou para o mundo do vício. Foi você que abusou da minha ingenuidade, que tirou a minha pureza, a minha bondade. Que despertou a minha escolha pelo mundo sombrio da diversão, da liberdade, da incoerência.
  A lua no auge iluminava a realidade do momento. O som da maré causava aflição para as respostas do final da história. O amor foi levado com o vento, o encanto se fundiu com a lua e se perdeu no espaço. Mas ainda havia luz.
  - E você acha que os leitores irão acreditar em você ou em mim? – perguntou Antônio com ferocidade.
  - Eles vão acreditar naquilo que eles querem acreditar. Eu sei que você me matou. E eu também sei quantas pessoas morreram em momentos decisivos. Você já imaginou a garota que eu seria se não o tivesse encontrado? Poderia ainda ter o amor dos meus pais, trabalhar como qualquer um, ser independente de vícios. Ser feliz!
  - Nós dois sabemos que buscar a felicidade a todo momento não passa de ilusão- E ele a beijou com força.
  Lilian mordeu-lhe os lábios e lambeu o seu sangue.
  - Espero que dessa vez você não tenha um isqueiro por perto para tentar me matar- disse ela ofegante.
  - Claro que não. Não sou capaz de matar ninguém.
  Lilian levantou-se e tirou um revólver do bolso.
  - Mas eu sou.
  Antônio tentou se levantar, mas Lilian atirou no seu joelho.
 - Você está louca? Vai acabar me matando!!
 - Você me matou primeiro.
 - Confessa, foi você que criou a estrada da perdição. Sou apenas um fantoche na sua história.
 - Não fui eu!- gritou ela. Nós dois sabemos.
 - Foi você- disse ele cuspindo- Eu e todos os leitores sabemos. O meu sonho. Foi tudo uma invenção. Você era eu na história e eu era você. Sou um fracasso, tenho uma família. Meus sonhos foram afogados no momento de tristeza que eu te conheci.
 - Cala a boca- Disse ela chorando.
 Antônio aproveitou a oportunidade e chutou-lhe a arma da mão. Socou a rosto de Lilian e correu para pegar a arma. Com sua agilidade, consegui pegar o revólver antes da mulher com os cabelos de fogo. Apontou-lhe a arma e disse:
 - Você estava certa. O sonho estava certo!- seu olhar mostrava frieza- Eu, um pai de família, sou viciado em drogas, em sexo. Espalhei o mal para diversas pessoas na estrada da perdição. Mudei de identidade nas luzes coloridas das baladas, nas festas. Criei a minha própria sepultura, o meu próprio vazio porque carrego a tristeza do infinito e a incompreensão do divino. Sou viciado em pecado, quero errar e acertar. Quero ser um canalha e um pai de família. Quero viver morrendo.
  Dois disparos foram o suficiente para levar o sopro de vida da mulher do fogo.
  Antônio começou a cavar um buraco na areia e depositou a arma onde ninguém nunca pudesse descobrir seus segredos, apenas o nobre leitor.
  De repente uma ideia maior que a sua razão começou a enrijecer o seu membro. Tirou rapidamente a roupa e começou a tirar as de Lilian. Seus dedos começaram a cutucar o buraco da morta, e seu membro começou a perfurar os segredos de uma jovem ardente. Começou a fazer sexo com o seu próprio pecado, com o seu próprio vício. Nunca havia ejaculado tanto, com tanto gosto, com tanto fogo, com tanta vergonha. Era um verme, tinha certeza, era um animal. Assim como os seus vícios irracionais.
   Os dois sabiam desde o começo que aquele encontro era para matar o vício de um deles. Antônio havia saído derrotado. Arrastava o corpo de Lilian para o mar, tinha a oportunidade de apagar a última chama do vício, e essa oportunidade ele não podia perder!
   O corpo de Lilian foi acolhido de braços abertos pelo mar.Antônio ficou ali, vendo uma história se perder no horizonte.
   Voltou pela estrada da perdição para casa. Entrou no apartamento e abriu a porta do quarto dos filhos. Ligou a luz do abajur que era azul e a iluminação mostrou que não havia ninguém. Apalpou o corpo e estava seco. Apalpou o joelho e não havia nenhum sinal de tiro. Foi para o corredor e entrou numa porta iluminada por várias luzes coloridas. Viu várias pessoas bebendo e rindo, conversando e rindo, dançando e rindo. Ficou ali, paralisado. Parecia que estava sozinho!

2 comentários:

Luiz Fellipe Torrano disse...

caraca gui vc ta foda, otimo texto, não é previsivel em momento algum, estou orgulhoso, parabens!!

Mari disse...

Incrível! Mostrou a realidade de muitos com um toque surreal. A vontade de viver intensamente pode ser tão exacerbada que não há liberdade, resta apenas o vício, a ilusão, a insanidade, a ruína e consequentemente o fim.
O texto ficou muito bom!

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