24 de jun. de 2012

Sangue Azul!


"Sangue azul, sangue nobre. Loucos são aqueles que não conseguem visualizar seu brilho e fazer do vermelho raridade no mundo inteiro."

Aos poucos Pedro Caio se aproximava do jardim, ele vestia um trench coat negro e botas da mesma cor, óculos escuros e um bloco de papel nas mãos. Essa era sua hora preferida para começar a escrever na acolhedora mansão Vitoriana, o clima silencioso do local e a sensação de paz que ele transmitia eram revigorantes para as almas que possuíam pouca paz pelo mundo e carregavam a tristeza do infinito dentro do coração. Suas palavras ali eram tão significativas como a vida, ás vezes ele se perguntava se elas poderiam traduzir a sua essência, tinha a impressão de que elas eram jogadas inúmeras vezes num borbulhante caldeirão e podiam expressar seus sentimentos de uma forma que o buraco negro que cobria a sua existência não fosse tão escuro e destruidor.

Os pássaros cantavam em cima da árvore próxima ao chafariz e ao banco do jardim, local em que Pedro ficava sentado horas por dia escrevendo sobre como a vida soava para ele tão idealizadora como nos filmes norte-americanos, cheia de aventura e final feliz. Porém nada disso parecia ser verdade, as pessoas funcionavam como robôs, obrigadas a fazer aquilo que não queriam presas em gaiolas feitas pela sociedade. Sou um passarinho que não posso cantar, pensava ele por diversas vezes com uma vontade imensa de ter nascido um pássaro e ser livre para voar.

As palavras naquele dia pareciam não fazer sentido, depois de trinta minutos com caneta e papel em mãos apenas uma frase estava escrita: Eu preciso viver!

Aquela frase parecia ter sido escrita com sangue, toda a vez que lia, uma pontada no coração demonstrava que nele em algum lugar havia amor, mesmo que estivesse escondido no fundo do pulsante coração que bombeava sangue para todo o corpo. Todo o seu existir. Sangue vermelho como o rubi, tão ou mais precioso do que aquela pedra que vale centenas de moedas douradas. Acho que meu sangue é azul, como os antigos diziam, não existe amor em mim, apenas a “sorte” de ter nascido numa família dotada de privilégios. Acho que meu sangue é azul. Acho que meu sangue é azul.

Azul, Azul, Azul. Essas palavras faziam ecos na sua mente, ele começou a se sentir nauseado, levantou rapidamente do banco e deixou caneta e papel caírem no gramado. Seu mundo começou a girar, a entrada da mansão Vitoriana parecia estar cada vez mais longe, só conseguia vislumbrar a belíssima casa ao fundo banhada de cor prata, luxuosa e moderna. Será que vou chegar a tempo? E foi nesse exato momento, na hora da correria, que seu corpo colidiu com algo, com brutalidade Pedro perdeu o equilíbrio e caiu no chão, o céu por cima parecia estar se movimentando rapidamente, como uma mistura homogênea, até que sua visão voltou ao normal e ele pode vislumbrar as nuvens negras que apareciam no auge e uma picada na ponta do seu dedo. Como o mundo é lindo! , pensava ele deslumbrado com toda aquela paisagem. Parecia que uma flecha tinha atingido o seu coração, o buraco parecia aos poucos se fechar. O ar que respirava era mais acolhedor, seus dedos da mão direita tocaram sutilmente o seu rosto, e uma nova descoberta fez um sorriso acorrentado desde o tempo em que era uma inocente criança se libertar. Consigo sentir o calor. Consigo senti-lo.

A sua mão esquerda se ergueu aos poucos, á medida que ele sentia o formigamento, e seus olhos ficaram paralisados ao ver uma pequena gota de sangue sair de seu dedo. É vermelho! Como o rubi. Meu sangue é vermelho como o fogo, como a chama da vela do meu bolo de aniversário.

E o seu virar em câmera lenta, mostrou que o fato mais devastador daquele dia ainda estava por vir. Seus olhos são azuis como o oceano, seus cabelos compridos e negros como o carvão, seus lábios vermelhos como a paixão.

-Desculpa. O senhor estava correndo e eu estava com pressa de chegar ao lado leste. Mil perdões.

Perdão? Desde quando anjo pede perdão? Será que sou um demônio tão assustador assim? Ou somente um anjo sem vida banhado de escuridão?

O silêncio triunfou naquele instante, o que dizia era o olhar. Quero beijá-la, preciso voar, pensava ele com seus olhos escuros como o fundo de um poço, arregalados, parecia que vislumbrava a luz, podia visualizar aquele anjo em forma de mulher tomando banho no rio encantado da vida, suas asas brancas como a nuvem no céu, seu corpo acolhedor encolhido em cima de um altar.

Foi nesse momento que começou a chover forte, a jovem mulher pegou o braço de Pedro e ajudou-o a se levantar. Foi nesse momento que seus olhos ficaram frente a frente. Luz contra trevas, Céu azul e noite escura se encarando face a face. Cara a cara.

A chuva não veio para acalmar os nervos, pelo contrário, parecia transmitir fogo, acender a chama. Incendiar o coração de Pedro. Transbordar sentimentos que não conseguiam encher meio copo havia anos. Adormecidos num labirinto coberto de monstros com postura soberana e diamantes no lugar dos olhos.

   -Quero você- sussurrou Pedro tão baixo que com o barulho da chuva era impossível de se ouvir.

   -Não entendi- disse a mulher com a testa franzida, e surpreendida por um caloroso beijo em seus lábios. Foi quente. Molhado. Doce. Acolhedor. Quente. Surpreendente. Segundos com intensidade de uma vida inteira. Demonstração de amor.

É isso que falta na vida, pensou Caio, enquanto seus lábios exploravam terras encantadas, seu coração batia mais rápido a cada milésimo de segundo. Saciando a sua sede, esmagando a sua vontade com o precioso e curto tempo. Mesmo sentindo a melhor coisa que o mundo tem a nos oferecer, ele não se sentia totalmente feliz por causa de um motivo. Ainda posso sentir a dor. Minha alma transparente ainda se contagia pelo mundo sombrio, corvos sobrevoam a minha mente, é medo, preciso me acalmar, é medo.

Assim que os lábios se separaram, deixaram de manter contato, Pedro só conseguiu pronunciar uma única palavra:

-Tempestade.

-Você não poderia ter feito isso- disse ela assustada com toda a inconstância que aquele momento estava proporcionando, ela só estava indo para a casa dos empregados depois de cumprir o primeiro dia das suas obrigações- O que é tempestade?

-Seus olhos. Parecem estar atravessando uma grande tempestade- Pedro continuou com a sua mão acariciando o cabelo liso daquela jovem e linda mulher.

-Preciso ir. Desculpa senhor. Foi tudo um grande engano- Ela se livrou de sua presença e com passos largos, começou a se encaminhar para a casa dos empregados, na área leste.

Como a vida pode se enganar? Cadê a chuva? Que diferença faz se agora está chovendo ou com um sol abrasador?, pensou ele

-Qual é seu nome? – gritou Pedro o suficiente para a garota ouvir. E com o mesmo tom de voz responder e virar-se para continuar a sua caminhada.

- Leila- ele ainda pode perceber um sorriso aflorar em seus lábios antes de ela se virar.

Leila. Eu quero amar Leila. Eu quero beijar Leila. Leila. Anjo. Leila. Liberdade. Pássaros. Voar. Eu quero voar. Não tenho sangue azul, o sangue que corre pelas minhas veias é vermelho. Vermelho como as pétalas das flores mais bonitas do jardim.

Pedro voltou para a mansão Vitoriana naquela tarde sorrindo de orelha a orelha, quando empurrou o portal cinza para entrar na mansão. A riqueza contaminou o ambiente, os móveis do Hall eram banhados de prata, com dois sofás na parte central, junto com um tapete de urso polar e uma lareira do lado esquerdo, na parte central tinha um tapete vermelho que decorava toda a escada até a parte de cima, e do lado esquerdo havia uma porta transparente que dava acesso a biblioteca, a piscina e ao salão de jogos, e uma porta preta com um buraco de três grades na parte central que levava a cozinha e ao depósito dos equipamentos dos empregados.

O que mais chamou a atenção de Pedro não foi nenhum desse luxo que ele estava acostumado a ver, e sim a sua imagem no grande espelho oval com sua borda cravejada de rubis.

Estou diferente. Não estou com olheiras, meus cabelos negros agora transmitem um pouco de brilho, aquele mesmo que eu posso ver no meu sorriso. Não estou mais tão pálido. Apenas minhas roupas me trazem uma imagem sombria. Um corpo coberto de amor vestido de luto. Parece que estou simbolizando muitos casais da atualidade, com vida e sem alma. Essa comparação o fez mais uma vez sorrir naquele dia.

Enquanto Pedro ainda se admirava no espelho, a voz do pesadelo voltou. Encheu a sala com um temor. Parece que as velas se apagaram e o que sobrou foi á fumaça.

 -Pedro é você?- disse Odete no meio da escada, seu vestido vermelho combinava perfeitamente com o tapete. Pareciam um só. E ela parecia uma flor. Uma rosa dotada de espinhos.


-Sou sim, será que mudei tanto para a senhora não me reconhecer?- disse ele, agora aos pés da escada.


Odete odiava ter que encarar as perguntas afiadas do filho, já não bastava o estresse de ser a presidente de uma das maiores empresas do mundo.

-Você muda a cada dia. Só a sua essência continua a mesma, querido. Sua aparência sempre foi perfeita, todos estamos cansados de saber do seu potencial nesse quesito. Porém, hoje alguma coisa mudou, consigo detectar alguma alegria. Você não entrou com a cabeça baixa pela aquela porta, parecia até que tinha visto um passarinho verde.

Dessa vez você errou mamãe. Não era verde, e sim vermelho. Vermelho como o sangue. Como uma fênix ressuscitada das cinzas dos mortos.

-Venha agora, querido- Odete abriu os braços- Venha abraçar sua mãe. Fico tão contente quando o vejo feliz.

Pedro subiu os degraus com receio, parecia que estava indo para um tribunal, prestes a ser decapitado. E quando o seu corpo entrou em contato com o da sua mãe, e as mãos dela cheias de um dourado poder selaram esse momento ao entrarem em contato com as suas costas, o frio tomou conta do seu ser, aquelas mãos pareciam frias como a pedra.

-O que aconteceu, Pedro? Porque esta tremendo?- disse Odete preocupada com suas mãos acorrentadas por pulseiras de ouro.

- Frio. Muito frio.

Sua alma esta algemada pela fortuna, por favor, me deixe ir, por favor, me deixe partir!

-Venha, vou te levar até o quarto, esta na hora de você descansar debaixo das cobertas- Os dois se encaminharam para a primeira porta da parte oeste do segundo andar.

O quarto continha vários tons de azul, uma cama de solteiro, quadros de composição surrealista e uma varanda para a parte frontal da casa. Odete ajudou-o a deitar na cama, pegou as cobertas no armário e depois de cobrir o filho que ainda tremia de frio, afagou seus cabelos negros e disse:

-Você é a coisa mais importante que já aconteceu na minha vida- Seu olhar se deteve um pouco para o lado de fora da varanda e depois de alguns segundos parece que ela saiu de uma hipnose, e voltou a se levantar para ir aos seus aposentos, depois de desejar uma boa noite para Pedro.

Mundo predatório, eu sei que foi longe dessa casa banhada de prata que você formou a sua vida, querida mãe. E eu que nunca sai dessa prisão? Esse metal frio que reveste todas as paredes. Eu sei que você amou, eu sei que seu sangue não é azul. Eu sei que você matou por amor. Eu sei, eu sei.

As lembranças voltaram de repente na sua mente. Estava subindo aquelas mesmas escadas vermelhas, com uma bola de futebol na mão. Queria mostrar para o papai que sabia chutar a bola como ninguém. E os gritos ao longo do corredor, começaram a aparecer quando entrou no quarto de seus pais, Odete armada com um revólver na mãos chorava, mas não de tristeza, e sim de um ódio indestrutível, podia jurar que sangue escorria pelo seu rosto em vez de lágrimas. Meu pai jazia com um buraco no peito deitado no chão e com os olhos voltados de terror.

Odete nada disse, apenas abraçou Pedro com força, e daquela vez seu abraço não tinha sido nem um pouco frio, era quente de amor, uma proteção que só pais e filhos podem sentir.

Nenhum dos empregados disse nada naquele dia. Todos diziam que um cara havia matado o meu pai. Mas eu sabia que não. A verdadeira assassina era a pessoa que eu mais amava. Os empregados continuavam sem falar e sem ouvir, presos na cozinha pelas grades de ferro. Foi o sangue vermelho do meu pai que fez a minha mãe triunfar sobre o mundo, suas mãos manchadas de sangue não importavam a ninguém, todos só queriam saber de sua emersão no vestido de glória.

Seus olhos escureceram como uma noite sem lua, uma nova idéia começou a fazer seu coração disparar cada vez mais rápido. Pedro via em toda essa história uma luz no fim do túnel.

Meu pai conseguiu se libertar, ele conseguiu voar.

Quando deixou o quarto a meia-noite, o bloco de papel que se encontrava em cima da sua mesa no quarto só continha uma frase com caneta vermelha: “Preciso morrer para viver”.

O corredor estava sombrio e silencioso, com passos lentos e seus olhos tão escuros como uma noite sem lua, ele estava obcecado pela possível liberdade.

Quando terminou de descer as escadas para o hall, foi direto para a mesa do relógio, desenroscou a algema do tempo e encontrou o que precisava: o revólver salvador que ajudara o seu pai a partir para um mundo sem desigualdade e maldade, tão pouco dor e tristeza, apenas voar pelas nuvens brancas de luz e nadar por lagoas com sereias.

Guardou o revólver e abriu as portas para a liberdade, um vento forte esfriou o seu corpo e anunciou a mudança na vida que estava por vir. Com passos rápidos como o daquela vez em que esbarrou com Leila, ele logo chegou ao jardim, mesmo depois de ter passado por tanto medo, no percurso ele tinha a sensação de que várias pessoas espiavam nas trevas.

Eles não querem que eu fuja. Preciso correr. Preciso correr o mais rápido possível, antes que o véu da desilusão me envolva com a sua sedução.

O banco da praça não estava vazio naquela hora da noite. Pedro conseguia vislumbrar os seus cabelos, seus lábios, sua perdição crescendo. Leila estava sentada com a cabeça curvada. Ele se aproximou e percebeu que ela chorava desesperadamente.

-Porque choras meu anjo?- disse ele com sua mão estendida para uma dança.

Leila assustada, levantou a cabeça, e Pedro viu suas lágrimas percorrerem todo aquele rosto angelical até seus lábios.

-Que sabor tem a lágrima?- perguntou ele com um tom muito elevado de curiosidade.

-Ela é salgada como a água do mar- disse ela rindo daquela pergunta totalmente desprovida de sentido.

- E a morte, que sabor ela tem?- perguntou ele com a perspectiva de que Leila soubesse tudo sobre os mistérios do mundo.

- A morte para muitos é amarga, para outros ela pode ser doce e acolhedora e para poucos uma salgada humilhação- disse ela rindo mais ainda dessa pergunta, era nítido que ela não levava nenhuma daquelas perguntas a sério, contudo tentava responder da melhor maneira possível- E o senhor? O que esta fazendo...?

Só que antes de ela terminar de perguntar, seus dedos a silenciaram, Pedro se agachou para que seus olhos ficassem no mesmo nível, e seu lábio começou a ficar cada vez mais próximo do dela.

-Em qual dessas definições você realmente acredita? – Suas palavras como o vento, levavam muito mais do que um simples frescor, seu hálito quente demonstrava que por trás de todo aquele luto, ele podia ser compreensivo e um rapaz incrível.

-Acho que amarga. -Seus olhos vislumbraram a arma cheios de terror-. O que você vai fazer comigo?

As vestes de Pedro Caio se debatiam incessantemente com o vento, seu ar soberano, sua cara de louco, seu meio sorriso mostrava que o final não era nada feliz e sim uma careta amedrontadora na noite vazia de nuvens.

Leila tremia. O pânico de estar indefesa era extremamente perturbador, Pedro caio se aproximava aos poucos, com a arma apontada para o seu rosto, suas botas deslizavam pela névoa negra que enchia aquele lugar aos poucos, urubus sobrevoavam a noite traiçoeira, sua luva de couro encostou-se a seu rosto para enxugar as suas lágrimas e aumentar a frieza em seu corpo de anjo inocente.

- O final esta próximo, Leila. Posso sentir o gosto da morte na minha boca.

-Por favor! Por favor! Não faça nada comigo, eu imploro. O que eu fiz?

Você não fez nada meu anjo, eu que sou torto. Leila. Tenho que gravar esse nome até o final da minha existência. No final só quero a luz e voar, voar como um anjo e ao paraíso buscar.

-Levante-se Leila. Preciso de um favor seu- Pedro Caio estendeu o revólver até a sua mão, e o largou- Eu preciso que você me liberte desse inferno. Não consigo mais agüentar esse rodamoinho de fogo que me atinge dos pés a cabeça, das minhas algemas eternas, dos meus pesadelos marcantes onde a vida é um tormento constante- Me mate! Agora. Por favor. Quero voar.

Pedro estendeu as mãos, só que dessa vez ele não queria nenhum abraço humano, e sim um último abraço, o fatal.

Feche os olhos, meu filho. Essa frase sempre minha mãe usava nos momentos em que eu não conseguia dormir. Dessa vez eu não iria acordar, dormir pelo infinito não parecia ser tão aterrorizador.

Leila levantou-se aos poucos, com a arma em mãos e apontada em direção ao peito de Pedro.

Que seja libertador. Que seja libertador.

Ela engatilhou o revólver.

Abra os olhos.

Os olhos dela não eram mais azuis, e sim vermelhos como a lava de um vulcão. O vento que levantou o seu cabelo e o raio que iluminou sua face banhada de fúria era um sinal de que a libertação seria rápida e indolor.

O revólver disparou e seu som ecoou por alguns segundos de um vazio devastador. Um corpo brutalmente caiu no chão.

A liberdade. Não é tão ruim assim. Posso sentir a minha chama ininterrupta, posso sentir minha alma lavada pela cachoeira dos campos do além.

Quando ele abriu os olhos, Leila mantinha seu rosto colado com o seu. Abriu os lábios e mais uma vez aquele amor voltado de luz rodeou o casal de um feitiço encantado e protetor.

Se isso é a morte meu Deus. Porque me levou a vida?

Sua boca tinha um gosto doce de morango, sua língua amaciava a sua com movimentos circulares, até que o tempo os separou, e seus lábios se selaram por mais uma vez até ela dizer:

-Olhe para trás.

Foi isso que Pedro fez e para seu grande alívio, a rainha das flores vermelhas, sua poderosa mãe jazia morta, com um tiro na testa, deitada no gramado que à tanto tempo o acolhera nos grandes momentos de solidão. Os olhos maternos dela transmitiam terror e dor, arregalados com a surpresa do rompimento da sua alma com o corpo, até então intacto pelo tempo. Após alguns segundos, o gramado começou a puxar o corpo de Odete para as profundezas, para cultivar o seu sangue pelas flores encantadas e quem sabe aumentar a intensidade de seu brilho no próximo amanhecer.

Eu sabia que você tinha sangue azul, mamãe. Viva para sempre, você nem imagina a forma que a morte pode ser libertadora.

Leila e Pedro ficaram de mãos dadas e correram direto para a mansão, quando abriram abruptamente as portas da Fortaleza Prateada, fizeram as suas malas e pegaram o máximo possível de objetos de valor para fugirem além do alcance de qualquer pessoa mortal.

Antes de sair, Pedro olhou para o local onde ficavam os empregados.

Aquelas grades nunca foram abertas, nunca vi as pessoas que trabalharam duro para me dar conforto, para me ajudar, para me fazer sorrir. Essa desigualdade vai passar pelo mundo séculos e séculos. Privilegiados contra Desfavorecidos. Será que um dia essa luta terá um fim?

Assim que Leila encostou-se a seu braço, ele sabia que lutava em outra batalha naquele momento. Os dois fugiram pela casa dos empregados, e Pedro colocou os seus pés na rua pela primeira vez. Desde que nascerá a mansão havia sido a sua prisão. Quando olhou para trás, viu pela última vez a mansão.

Eu posso voar. Ninguém com a foice na mão e de capuz veio me buscar como nos desenhos animados, apenas uma bela beldade com um beijo imortal e sincero.

Não havia mais urubus para sobrevoar, tampouco uma escuridão para se esconder, nem sangue azul para se banhar e nem algemas douradas para lhe aprisionar.

Leila abraçou Pedro Caio e sussurrou em seu ouvido:

-E agora pra onde vamos?

E Pedro Caio não tinha a mínima noção do que fazer.

O que fazer com a liberdade quando ela se curva para você? Parece que lutei durante anos por uma idealização da minha mente.

Ele apalpou aquele belo corpo na calçada, perdidos no mundo, a única importância era o presente momento, o futuro era uma caixa de surpresa. A mansão vitoriana ao fundo, escurecida, fechava os olhos para não ver Pedro Caio. Sozinha, ela sentia uma forte angústia e uma imensa vontade de chorar. Sangue azul escorria pelas paredes esperando seduzir seus próximos moradores.

10 comentários:

Anônimo disse...

Fantástico!!!

Mari disse...

Adorei!
Você realmente conseguiu fazer O fim!

gabbygruzdiv disse...

ADOREI A HISTORIA!!!!!
brilhante ideia, parabens Gui!! cada vez melhor! :D

Raquel disse...

Uou. Excelente! Adorei essa atmosfera onírica do texto, quer dizer, eu pelo menos achei bem surreal. Muito bom mesmo.

Guilherme V. Torrano disse...

Muito obrigado pelos comentários. Fiquei muito contente! Esse é um dos meus preferidos, então a opinião de cada um de vocês foi muito importante. Até mais!

Luiz Fellipe Torrano disse...

Muito bom Gui!!!

Anônimo disse...

Excelente! O enredo é muito bom, e o personagem principal apresenta um tipo de loucura e uma atmosfera sombria muito boa! Parabéns!

Patríciatrr disse...

Lindo, lindo, lindo, amei Gui, você tem talento, o texto é envolvente, criativo e desperta nossa curiosidade.

Raquel Gonçalves disse...

Gui, adorei a história. Vc nasceu para ser escritor. Sempre com ótimas ideias. Parabéns

Guilherme V. Torrano disse...

Preciso agradecer novamente aos comentários desse conto que pra muitos é o melhor que eu já escrevi. Obrigado!

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